Por Raimundo Aben Athar
raimundoathar@gmail.com
Em 01.04.2020, o Jornal O GLOBO, publicou matéria, assinada
pelo jornalista Igor Siqueira, com o seguinte título: "Por que o balanço do Flamengo tem ressalva de auditoria"
A notícia sobre a ressalva dos auditores foi repercutida com destaque pela imprensa esportiva indicando de forma muito clara que uma ressalva em peças contábeis é interpretada pela sociedade e por alguns usuários da informação contábil como um fato, que suscita dúvida sobre a idoneidade da entidade que elaborou as peças contábeis e dá sempre a ideia de que os auditores "descobriram" um erro que precisa ser reparado.
Contudo, sabemos todos, que ressalvas em peças contábeis, podem significar apenas interpretações e óticas diferentes sobre questões subjetivas que existem em abundância na Contabilidade, praticada atualmente no Brasil, principalmente após a adesão do país às Normas Internacionais de Contabilidade.
Auditores, em trabalhos de auditoria, quando encontram um tema ainda não pacificado, sujeito a inúmeras formas de interpretação, tendem a adotar uma postura conservadora, via de regra, não se dão ao luxo de serem ousados e flexíveis em seus juízos de valor, principalmente no primeiro ano na empresa auditada. Em dúvida interpretativa, necessitam ser rígidos e hígidos e acabam, por óbvio, mais privilegiando a forma normativa (a busca do que está escrito em um código) do que propriamente a essência do fato.
Um único motivo existiu para a ressalva. Foram os gastos ativados no Intangível na rubrica contábil "Atletas em Formação".
Os ativos intangíveis, como um subgrupo de contas, foi incluído na Contabilidade brasileira em decorrência do processo, do que alguns autores chamam de convergência às normas internacionais de Contabilidade. Na verdade, um processo harmonizador entre as normas brasileiras e as normas internacionais de Contabilidade.
O primeiro sinal de efetiva harmonização
do Brasil às normas internacionais de contabilidade, ocorreu com as alterações
havidas na lei 6.404/76, num primeiro momento, pela lei 11.638/2007 e
posteriormente pela lei 11.941/2009.
Uma dessas mudanças foi a criação do subgrupo Intangível, promovida pela inclusão no art. 179 da lei 6.404/76, do inciso VI, com a seguinte
redação:
"As contas serão classificadas do seguinte modo(...)(...)VI - no Intangível os direitos que tenham por objeto bens incorporéos destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade, inclusive o fundo de comércio adquirido"
A definição legal preconizada pela lei 6.404/76 enfatiza que “intangível” é apenas algo imaterial ou incorpóreo. Tal grupo de contas parece ter sido editado apenas
para separar claramente os bens corpóreos dos bens incorpóreos. Antes, no Brasil, havia um grupo de contas chamado de Diferido que abrigava as "aplicações de recursos em despesas que contribuirão para a formação do resultado de vários exercícios sociais". Era onde, por exemplo, se acolhia os gastos com pesquisas e desenvolvimento de produtos, de projetos. o subgrupo de contas Intangível, abriga as mesmas contas.
A mudança na lei, apesar de um pequeno avanço, foi um
conceito que, da forma como foi redigido, mais atendia ao Direito Societário do que propriamente à Contabilidade além de ser um texto por demais abrangente e que dava margem a inúmeras interpretações.
Desde 2005, com a criação do Comitê de Pronunciamentos
Contábeis [CPC], a classe contábil passou a ser representada e efetivamente vem proporcionando, ao longo desses anos, a harmonização da Contabilidade Brasileira às Normas
Internacionais de Contabilidade. Nesta toada, o Comitê de Pronunciamento
Contábil [CPC] emitiu o Pronunciamento Contábil nº 04, que já se encontra em uma segunda versão. O pronunciamento possui um texto específico sobre o tema, mas tão mais abrangente sobre o que é ativo intangível, quanto criador de várias formas de se interpretar os inúmeros conceitos que envolvem o assunto. A segunda versão, embute 133 itens, dispostos em 133 páginas, com nove exemplos e uma interpretação técnica.
Para ser caracterizado como um Ativo Intangível, segundo o pronunciamento contábil nº 04, o ativo necessita atender cumulativamente a três requisitos:
(1) ser identificável, podendo ser separável ou resultar de direitos contratuais; (2)
ser controlado pela entidade, ou seja ter capacidade de poder obter benefícios econômicos no futuro e
restringir o acesso a esses benefícios por terceiros e (3) ser gerador de
benefícios econômicos futuros, por exemplo, incluir a receita com venda de
atletas ou outros benefícios econômicos no futuro.
Por sua vez o Conselho
Federal de Contabilidade, editou a Norma Brasileira de Contabilidade - NBC ITG
2003, a primeira versão em 2013 e a segunda versão em 2017, sendo que nesta segunda versão, menciona diretamente cerca de treze itens da NBC TG 04, a qual, nada mais é, do que o pronunciamento 04, a pouco citado, transformado em uma Norma Brasileira de Contabilidade.
A NBC ITG 2003-R1, no item 15-A enfatiza sobre o momento da ativação do gasto como intangível:
"15-A: os gastos com formação de atleta somente podem ser reconhecidos como ativo intangível a partir do momento em que o candidato a atleta apresentar viabilidade técnica de se tornar atleta profissional, de acordo com a NBC TG 04 - Ativo Intangível, especialmente os itens 13 e 54 a 64"
O item 13 da NBC TG 04 trata da questão da necessidade de haver controle e os itens de 54 a 64, da NBC TG 04, são referências à fase da pesquisa e à fase de desenvolvimento, são itens eivados de possibilidades de interpretações diversas. Há itens que somente por analogia permitem uma associação com a atividade de formação de atletas. O item 56 apresenta exemplos de atividade de pesquisa, vejamos:
"(a) atividades
destinadas à obtenção de novo conhecimento;
(b) busca,
avaliação e seleção final das aplicações dos resultados de pesquisa ou outros conhecimentos;
(c) busca de
alternativas para materiais, dispositivos, produtos, processos, sistemas ou
serviços; e
(d) formulação,
projeto, avaliação e seleção final
de alternativas possíveis
para materiais, dispositivos,
produtos, processos, sistemas ou serviços novos ou aperfeiçoados"
Já a fase de desenvolvimento, reserva nove itens para serem analisados e, se atendidos, os gastos com a formação do atleta passam a ser reconhecidos no ativo intangível. Vejamos o item 57, um dos nove itens, da NBC TG 04 que trata da fase de desenvolvimento e estabelece as condições para que a entidade possa reconhecer um gasto com formação de atletas como ativo intangível.
"Fase de desenvolvimento
57. Um ativo intangível
resultante de desenvolvimento (ou da fase de desenvolvimento de projeto interno) deve ser reconhecido somente se a entidade puder demonstrar todos os aspectos a
seguir enumerados (grifo do autor):
(a) viabilidade técnica para concluir o ativo intangível de
forma que ele seja disponibilizado para uso ou venda;
(b) intenção de concluir o ativo intangível e de usá-lo ou
vendê-lo;
(c) capacidade para usar ou vender o ativo intangível;
(d) forma como o ativo intangível deve gerar benefícios econômicos
futuros. Entre outros aspectos, a entidade
deve demonstrar a existência de mercado para os produtos do ativo intangível ou
para o próprio ativo intangível ou, caso
este se destine ao uso interno, a
sua utilidade;
(e) disponibilidade de recursos técnicos, financeiros e outros
recursos adequados para concluir seu desenvolvimento e usar ou vender o ativo
intangível; e
(f) capacidade de mensurar com confiabilidade os gastos atribuíveis
ao ativo intangível durante seu desenvolvimento."
Como vimos, para ativar um gasto e transformá-lo num ativo intangível é preciso: demonstrar viabilidade técnica, a intenção de concluir, a capacidade de vender o ativo, a forma como será gerado os benefícios futuros. Sem dúvida, temos aqui um fecundo e profundo exemplo do "subjetivismo responsável", tão decantado em prosa e verso na literatura contábil brasileira.
Da forma como está, controlar todos estes passos necessários para ativar gastos e reconhecê-lo como ativo intangível é custoso e desgastante e acaba por ser um incentivo a tratá-los como despesas. Todavia, um atleta em formação é tipicamente uma aplicação de recursos que poderá contribuir para receitas futuras. Quando constatado que o gasto não serviu para trazer receitas, lança-se como despesas no momento daquela consideração.
Com todas as observações aqui efetuadas, segundo a interpretação dos conceitos da lei 6.404, do CPC 04 e da NBC ITG 2003 - R1, foi reconhecido e assumido pelo Clube de
Regatas do Flamengo, na rubrica contábil “Atletas Em Formação”, pertencente ao subgrupo do Ativo Intangível, o saldo final de
2019 no valor de R$ 44,1 milhões. Contudo, o valor contabilizado foi ressalvado
pelos auditores por discordâncias nos critérios de ativação dos gastos, capitalização e recuperação do valor ativado.
Vale aqui lembrar que o ativo intangível do Clube de Regatas do Flamengo desde 2017 até 2019 assumiu os seguintes valores: 2017: R$ 93,5 milhões (sem ressalvas dos auditores) 2018: R$ 178,0 milhões (sem ressalva dos auditores) e 2019: R$ 326,1 milhões (deste total somente R$ 44,1 milhões foi ressalvado).
Mesmo com todas as fases e todas as possibilidade de interpretações diversas aqui mencionadas, somente 13,5% dos gastos ativados como intangíveis foram ressalvados.
Não deve restar dúvida de que há possibilidade de uma série
de questões interpretativas nas normas que regem o assunto “Intangível”. Existem mesmo questões, nas normas editadas, que podem dar margens a interpretações
diversas. Tanto é verdade que auditores, sem alguma dúvida, quanto às suas
respectivas idoneidades, adotaram, como vimos, em anos distintos, procedimentos distintos.
Assim, sejam bem
vindos, caros leitores e leitoras, ao mundo da ciência, onde questões
interpretativas podem mesmo gerar opiniões diferentes e as “verdades” de cada
interpretação sendo perfeitamente válidas, ou seja, aceitas por alguns e não
aceitas por outros. Ainda há que haver muito congressos, seminários, painéis, simpósios, etc para a produção de "papers acadêmicos" e em algum momento surgirão questões pacificadores sobre os temas que causam dúvidas nas interpretações, mais pelo senso comum do que propriamente ter que "estar escrito no papel", expressão máxima do chamado "code law".
Em 2017 e 2018, o Clube de Regatas do Flamengo, para seus
ativos intangíveis, adotava a mesma forma de reconhecimento contábil, que
adotou em 2019 e, como já vimos, vale ressaltar, que tais procedimentos foram auditados e não
sofreram alguma ressalva dos auditores daqueles anos de 2017 e 2018. Contudo,
em 2019, outros profissionais da ciência contábil entenderam que não havia caracterização suficiente para a ativação dos gastos e sua viabilidade econômica, invocando-se assim, uma questão
muito comum em auditoria, neste caso interpretada, como limitação de escopo nos trabalhos.
A rubrica contábil ressalvada denomina-se “Atletas em
Formação” e, com os critérios dos auditores de 2019, segundo a opinião dos
auditores de 2019, estes não encontraram evidências que suportassem a
capitalização do saldo daquela rubrica, bem como, seu valor recuperável.
A rubrica “Atletas em Formação”e pode abrigar gastos com alojamento, educação, vestuário, transporte, saúde, treinamento,
comissão técnica, contratos especiais a custos históricos ou até mesmo a custos
hedônicos (custos implícitos). A caracterização de um benefício econômico
futuro, sem dúvida, é derivada de um contrato porque permite o controle para obter
(recuperar) os recursos gerados pelos, por exemplo, custos hedônicos ou
implícitos daquele contrato.
Atletas do Clube de Regatas do Flamengo, como Lucas Paquetá, Vinicius Júnior e Reinier, foram considerados
“atletas em formação” no passado e certamente tiveram seus benefícios econômicos
calculados, medidos e avaliados para a confecção de seus contratos especiais.
Vale lembrar que contratos especiais de trabalho, desde a idade de 14 anos dos atletas em formação, são permitidos pela CBF, conforme art. 29 do
Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol da CBF
ou com 16 anos, segundo o Art. 29, desta feita, da lei 9615/98, conhecida como Lei
Pelé, para o clube que não for certificado como clube formador de atletas.
Ora, estes três atletas foram vendidos muito jovens e proporcionaram ao
Flamengo uma receita nominal de R$ 465 milhões nos últimos três anos, tais receitas auferidas,
evidente, tornaram os benefícios econômicos calculados no passado, quando atletas em
formação, extremamente subavaliados.
Já vimos que uma das condições para ser caracterizado como
Ativo Intangível é que este Ativo seja gerador de benefícios econômicos no
futuro, que tenha uma base contratual e que possa ser controlado. O entendimento sobre esta forma de reconhecimento contábil no
ativo Intangível, não é um entendimento pacificado. Por exemplo, em alguns países europeus, diferente do que ocorre no Brasil, os valores consumidos com formação
dos atletas, desenvolvidos pelos clubes de futebol, em suas categorias de base,
seja infantil, juvenil ou júnior, são tratados como despesas no período em que
ocorreram, não sendo permitida a capitalização no ativo intangível dos clubes.
Ativar um gasto significa desconsiderar que este gasto seja,
por exemplo, uma despesa ou um custo do período, há que aguardar os benefícios gerados pelos gastos para amortizá-los em função, por exemplo, do tempo de um contrato. No caso do reconhecimento para ativar
um gasto e considerá-lo como um ativo intangível é preciso, como vimos, concomitantemente,
haver a identificação por um instrumento contratual onde possa haver
controle e que provoque benefícios econômicos no futuro. Se tudo existe, então
há um ativo intangível. Por outro lado, o parecer dos auditores de 2019, questiona, de forma subliminar, que os gastos não deveriam ter sido ativados e, se não ativados, deveriam ser enquadrados como despesas e não como ativo
intangível.
Em 2017 e em 2018, os auditores não levantaram esta dúvida e
os gastos com atletas em formação foram ativados sem alguma ressalva. Aqui está
a riqueza da ciência, mesmo com o risco de gerar no leigo um desconforto, uma sensação de "bagunça" e de que “tudo pode” a depender de vários fatores. Longe disso, como já enfatizamos, a
ciência caminha e ao fim e ao cabo forma juízos que passam a ser aceitos pela
maioria e, de certa forma, os conceitos vão sendo pacificados.
A ciência contábil claramente é dirigida para os usuários externos
da informação contábil, tais como os investidores, os financiadores de recursos,
os governos e os fornecedores, os chamados stakeholders, por isso, deve a
ciência contábil, de forma fidedigna, expor, relatar, demonstrar, as condições
patrimoniais, financeiras, econômicas e de resultados das entidades, com ou sem
fins lucrativos.
Sabemos que os relatórios contábeis (as demonstrações) são baseados
em pressupostos, em postulados, em princípios e em algumas convenções, próprias
da ciência contábil e que, por obvio, devem ser aplicadas e respeitadas,
contudo, tal profusão de regras contábeis, algumas transformadas ou
parcialmente transformadas em leis ordinárias e, portanto, correlacionadas e
relacionadas a questões, civis, societárias, fiscais e também gerenciais, claro, podem gerar (e efetivamente geram) interpretações equivocadas sobre a
valoração e/ou o momento de certas formas de reconhecimentos contábeis.
Vale aqui lembrar que todos os pronunciamentos contábeis que
adequaram a Contabilidade praticada no Brasil à Contabilidade praticada no
mundo, guardadas uma ou
outra questão cultural, tais pronunciamentos, foram em sua maioria,
transformados em Normas Brasileiras de Contabilidade, as NBC(s), alcançando
assim praticamente todo tipo de empresa, inclusive um clube de futebol, sem
finalidade lucrativa. Vale ressaltar que a adequação das normas brasileiras às
normas internacionais gerou aqui no Brasil, uma expressão, muito lembrada na
Academia, da qual já fizemos menção, chamada “subjetivismo responsável”, em alguns casos um “subjetivismo
enviesado”, devido exatamente às questões contábeis que podem gerar cálculos e
interpretações diferentes entre os Contadores no reconhecimento contábil
daquelas questões. O caso dos intangíveis, não é único.
É verdade, há no Brasil muitas divergências entre, por
exemplo, questões fiscais e questões societárias, tais questões geram muitas
dúvidas, tanto quanto aos valores que devem ser oferecidos à tributação, quanto
pura e simplesmente à valoração de alguns itens para serem apresentados no
Balanço Patrimonial.
Na prática, as diversas formas de interpretação, envolvendo questões
fiscais, societárias e de valoração de ativos, em alguma medida, divergem e
produzem valores absolutamente diferentes. Vejamos alguns exemplos:
- O reconhecimento do valor justo de
ativos e passivos
- A provisão e reconhecimento de perdas
com créditos em atrasos
- As depreciações;
- As provisões de contingências
(trabalhistas, ambientais, cíveis;
- O reconhecimento de perdas na
realização de ativos (teste de recuperabilidade).
Este último item, o reconhecimento de perdas na realização de
ativos, foi um dos motivos para a ressalva dos auditores no Balanço Patrimonial
do Clube de Regatas do Flamengo, levantado em 31.12.2019. Deriva do fato de que
os ativos não podem estar registrados por valores que excedam seus valores de
recuperação, ou seja, um bem que valha 100 unidades monetárias, não deve estar
registrado contabilmente por 120 unidades. O valor que poderá ser “recuperado”,
neste exemplo, será de 100 unidades monetárias e é este valor que deve estar
reconhecido como valor contábil no Balanço Patrimonial. Por isso, é preciso um “teste”
para se obter um valor que, ao ser confrontado com o valor contábil, permita
apontar a condição ou não de recuperabilidade daquele bem.
O teste de recuperabilidade deriva de algumas suposições e, como
já enfatizamos, qualquer suposição, pode gerar interpretações não convergentes.
Basta atentar sobre os caminhos que se deve percorrer para se aplicar o teste
de recuperabilidade. Vejamos: em primeiro lugar, deve-se calcular o valor
recuperável do ativo e comparar este valor com o valor contábil deste mesmo
ativo, entrementes, o valor contábil do ativo é o resultado do custo histórico,
menos depreciações ou amortizações e menos perdas acumuladas. O valor
recuperável é, por sua vez, o resultado de uma comparação, entre o valor em uso
e o valor justo, líquido das despesas para vender este ativo. Mais: O valor em
uso, é função de uma taxa de desconto aplicada sobre o que se espera de
receitas no futuro, trazidas a valor presente pela aplicação desta tal taxa de
desconto, a qual nada mais é do que o reflexo dos riscos que se espera para os
fluxos de caixa futuros estimados. O maior dos valores entre o valor em uso e o
valor justo, será considerado o valor recuperável.
Diante de tantos “caminhos”, para se chegar ao dito “valor
recuperável”, não é de estranhar o motivo para o tal “subjetivismo responsável”,
já mencionado.
São quase cinquenta pronunciamentos contábeis emitidos pelo
Comitê de Pronunciamentos Contábeis - CPC, os quais adequaram o Brasil às
normas contábeis internacionais, tornando, de certa forma, as peças contábeis
levantadas por empresas brasileiras, comparáveis com empresas do mundo todo.
Um desses pronunciamentos contábeis, o de nº 01, trata
exatamente da “Redução ao Valor Recuperável de Ativos”. Certamente, por conta
dos subjetivismos de algumas regras, surge no bojo, um conservadorismo, até
natural por parte de quem é responsável pela opinião sobre a fidedignidade do
levantamento de uma peça contábil.
Outro CPC, o de nº 04, já comentado, como vimos, define o tratamento contábil
a ser dado aos ativos intangíveis e suas formas de reconhecimento,
identificação, controle, mensuração, aplicação e apuração dos valores que devam
ser reconhecidos no sistema contábil das entidades.
Vale mencionar que inicialmente, todo ativo intangível, tirante a questão se o gasto deve ser ou não
ativado, fato é que, sendo ativado, deve ser reconhecido pelo custo histórico e
reconhecer pelo custo histórico não é, normalmente, um problema para os
auditores, posto que deve haver base documental para formar o total de consumo os
atletas em formação, por exemplo, com o alojamento, a educação do atleta,
salários do pessoal da comissão técnica, transporte e vários outros itens; a subjetividade deriva principalmente de
questões como a capacidade de geração e a mensuração dos benefícios econômicos
no futuro. É aqui, o principal motivo para haver eventuais ressalvas em
trabalhos de auditoria.
Borges (2011) , um autor português da Universidade de Aveiro, muito citado
pela academia aqui no Brasil, quando o assunto é a valoração de ativos
intangíveis, envolvendo jogadores de futebol, definiu como deve ser o
preenchimento dos critérios de reconhecimento dos ativos intangíveis envolvendo
jogadores de clubes de futebol. O quadro 1, a seguir, ilustra tais critérios:
Quadro 1
Fonte: Elaborado por Borges(2011)
Responder
questões como “É capaz de gerar benefícios econômicos futuros? ou Mensurado
com Confiança? Sem dúvida pode haver critérios diferentes de interpretação no reconhecimento dos valores contabilizados e quem
audita pode não se sentir confortável para atestar valores que englobem, por
exemplo, custos implícitos nos contratos assinados desde a tenra idade pelos
responsáveis pelos atletas.
Especificamente, a base para a opinião com ressalva dos Srs. Auditores,
no Balanço Patrimonial do Flamengo de 31.12.2019, foi assim relatada:
Base para opinião com ressalva
Conforme descrito na nota explicativa 8, o Clube possui gastos diretamente relacionados com a formação de atletas, registrados em seu ativo intangível, sob a referência “Atletas em formação”, no montante de R$ 44.123 mil, em 31 de dezembro de 2019. Não obtivemos evidência suficiente que suportasse os critérios de capitalização desses gastos, bem como a mensuração do valor recuperável do referido ativo intangível; consequentemente, não foi possível concluirmos sobre a adequação do referido saldo nas demonstrações financeiras."
Apenas para efeitos didáticos, vejamos a movimentação da
rubrica “Atletas em Formação” no ano de 2018, conforme quadro 2, a seguir,
Quadro
2
ATLETAS
EM FORMAÇÃO - CRF
R$
em milhares
Saldo em 31.12.2017 23.832.
+ Adições em 2018 23.071.
(-) Vendas/Alienações em
2018 -9.559.
(-) Atletas considerados
formados em 2018 -2.143.
= Saldo em 31.12.2018 35.201.
Fonte: Balanços
Patrimoniais do Clube de Regatas do Flamengo – 2019
Cumpre ressaltar que os Balanços Patrimoniais de 31.12.2017 e
31.12.2018 foram auditados e não ressalvados pelos respectivos auditores
daqueles anos. Ou seja, tiveram apenas uma opinião diferente dos auditores de
2019.
Note que o ano de 2019 inicia-se com R$ 35,2 milhões e são
acrescentados, ao longo de 2019, R$ 31,6 milhões e subtraídos R$ 22,7 milhões de baixas. O quadro 3, a seguir,
apresenta a composição do saldo da rubrica “Atletas em Formação” no ano de 2019:
Quadro
3
ATLETAS EM
FORMAÇÃO
R$ em Milhares
Saldo em
31.12.2018 35.201.
+Adições em 2019 31.618.
(-)
Vendas/Alienações de 2019 -16.499.
(-) Atletas considerados
formados em 2019 -
6.197.
= Saldo em
31.12.2019 44.123.
Fonte: Balanço
Patrimonial do Clube de Regatas do Flamengo – 2019
Não deve haver dúvida que o saldo final
de 2019, ressalvado pelos auditores, foi formado após a consideração do saldo
anterior de R$ 35,2 milhões, dos gastos efetivos ao longo de 2019, no valor de
R$ 31,6 milhões e das baixas motivadas por atletas considerados formados e
pelas vendas ou alienações ocorridas em 2019, todos os registros de custos, oriundos, como parece ser, de anos anteriores, no valor de R$ 22,7 milhões (R$ 16,5 milhões + R$ 6,2
milhões), registre-se, não foram ressalvados pelos auditores daqueles anos
anteriores.
Pelo exposto, parece que efetivamente somente os R$ 31,6 milhões de gastos lançados ao longo de 2019 foram realmente os gastos para os quais não foram obtidas evidências para a ativação, dado que nos anos de 2017 e 2018, os valores baixados já estavam ativados em períodos anteriores e não sofreram ressalvas, salvo se as baixas referem a valores ativados em 2019, o que não parece ser o caso.
O valor de R$ 31,6 milhões referentes aos gastos com atletas
em formação, em 2019, representam apenas 3,6% do total do Ativo do Clube de
Regatas do Flamengo.
É comum em auditorias especiais, em perícias,
em arbitragens sobre questão contábeis e até mesmo em etapas iniciais sobre
avaliação de empresas (valuation), quando do início dos
trabalhos, a busca, o levantamento de dados que poderão ser explorados, seja por apresentarem variações relevantes, seja por apresentarem diferenças significativas ou inconsistências na composição e/ou na evolução dos números verificados. Busca-se, nesta fase, múltiplos ou parâmetros sobre a evolução e a composição dos valores iniciais e finais das rubricas contábeis e o grupo ou
subgrupo a que pertencem. Sem dúvida, séries temporais e suas inter-relações são importantes nesta fase inicial.
Há ainda vários tratamentos matemáticos e estatísticos que podem
ser aplicados, os quais possibilitam apartar um fenômeno, isolar um número ou
uma rubrica contábil para ser analisada, regredida ou simplesmente observar o
comportamento dos itens analisados em relação ao grupo a que pertence, seja pelos
excessos para mais ou para menos na evolução e na composição dos itens
observados.
Assim, vejamos a composição e a evolução do
Ativo Intangível do Flamengo nos anos de 2017, 2018 e 2019. Vale destacar que
tal análise não sofrerá tratamento sofisticado algum, haverá destaques apenas para a
evolução e a composição dos valores nominais das rubricas pertencente ao Ativo
Intangível, com destaque para a rubrica “Atletas em Formação”, cujo saldo foi
objeto da ressalva em 2019.
Vale lembrar, na peça contábil publicada pelo Clube de Regatas do Flamengo,
em 2019, o valor do Ativo Intangível deriva sobre os seguintes direitos: (1)
atletas profissionais formados, (2) Atletas em formação e (3) Direitos Federativos/Outros.
Vejamos a seguir, nos quadros 4 e 5, a composição e a evolução
dos saldos finais da rubrica ressalvada “Atletas em Formação” juntamente com as
demais rubricas contábeis que compõem o ativo intangível do Clube de Regatas do
Flamengo nos anos de 2017 até 2019:
Quadro
4
COMPOSIÇÃO DO ATIVO
INTANGÍVEL
|
2017
|
%
|
2018
|
%
|
2019
|
%
|
Atletas Profission. Formados
|
466
|
0,5
|
1.035
|
0,6
|
5.255
|
1,6
|
Atletas em Formação
|
23.832
|
25,3
|
35.201
|
19,8
|
44.123
|
13,5
|
DireitosFederativos/Outros
|
69.803
|
74,2
|
141.767
|
79,6
|
276.775
|
84,9
|
Total do Ativo Intangível
|
94.101
|
100
|
178.003
|
100
|
326.153
|
100,0
|
Fonte:
Balanço Patrimonial de 2019 - CRF
|
Desde
2017, a rubrica contábil “Atletas em formação” do subgrupo do ativo intangível,
vem diminuindo sua representatividade. Em 2017, a participação foi de 25,3%. Em
2018, a participação no grupo diminui para 19,8% e em 2019, cai mais ainda para
apenas 13,5%. Vê-se, portanto, que a participação da rubrica, objeto da
ressalva, pelos auditores de 2019, sua composição diminui de forma significativa,
relativamente ao total dos ativos intangíveis do Clube de Regatas do Flamengo,
indicando que os gastos ativados com formação de atletas, estruturalmente vem
diminuindo sua participação, função do crescimento muito superior de outros
itens no próprio subgrupo Intangível e, principalmente, do ativo total do Clube
de Regatas do Flamengo.
O quadro 5 a seguir indica os mesmos itens do ativo
intangível, desta feita, observando a evolução dos saldos em cada final de ano,
desde 2017. Vejamos:
Quadro
5
Observa-se que a rubrica ressalvada pelos auditores, “Atletas
em Formação”, elevou-se nominalmente em apenas 25,2%, de 2018 para 2019, comparativamente
ao total do ativo intangível que, no mesmo período teve uma variação de
83%. Assim, confirma-se a diminuição relativa da rubrica "Atletas Em Formação" comparativamente às demais rubricas do Intangível, bem como ao total do subgrupo.
Vale acrescentar que, no Balanço Patrimonial, de 31.12.2019, ao longo do ano, o ativo
circulante (os bens e direitos mais líquidos de qualquer entidade) elevou-se
nominalmente em incríveis 191,8%, enquanto que, o ativo não circulante, com
intangível incluído, também nominalmente, elevou-se, no mesmo período, em
apenas 29,2%. Ou seja, uma pujante capitalização do patrimônio bruto do Clube de Regatas do Flamengo.
Um outro dado que pode ser considerado é que, se os gastos com formação de atletas fossem considerados como
despesas, no ano de 2019, representariam 4,7% dos R$ 677,1 milhões do total de custos e despesas operacionais Em 2018, o mesma correlação representava 5,1% de 389,9 milhões
Pode-se também comparar a adição de gastos, ocorrida entre
2018 e 2019, com atletas em formação (reveja os quadros 2 e 3), tal variação
foi de 36,7%, saindo de gastos no valor de R$ 23,1 milhões em 2018, atingindo
R$ 31,6 milhões em 2019.
Assim, não há nada a indicar que os gastos com formação de
atletas foram desproporcionais ou chamem a atenção quando comparados pelo todo
ou somente no subgrupo a que pertencem.
Importante destacar que não se questiona aqui os critérios
que levaram aos auditores de 2019 à conclusão sobre a ressalva, longe disso.
Decisão soberana e critérios idem. O que queremos enfatizar é que há juízos em
que cada profissional pode adotar critérios diferentes, sem que uma opinião
seja melhor que a outra. A opinião é apenas diferente da outra.
Evidente que, tanto os testes de observância e os testes
substantivos são aplicados pelas empresas de auditoria, com a intenção de obter
elementos para a opinião em relatório, visando validar ou não determinado
procedimento ou reconhecimento contábil. Entretanto, há que se levar em conta
que a Contabilidade praticada no Brasil, culturalmente sempre se baseou mais em suporte
da lei, do código, do que da essência do fato. No Brasil, sempre foi o governo central e não a classe contábil que
decidia sobre as questões contábeis praticadas no Brasil.
É exatamente a prevalência da necessidade de ter que haver
códigos (code law), para que um reconhecimento contábil possa ser considerado
efetivo ou, digamos, plenamente aceito. Assim, tal questão cultural exige a
aplicação de regras ou a aplicação de normas que necessitem de códigos,
tutelados e chancelados pelo Estado.
Em passado recente foi assim, com os reconhecimentos contábeis referentes aos arrendamentos mercantis onde,
por exemplo, na essência poderia haver um financiamento e, na verdade, juridicamente
havia apenas um aluguel o qual deveria ser reconhecido por competência. A situação era tão atípica que era muito comum observamos nas peças contábeis, por exemplo, de empresas
de transporte, sem algum caminhão ou outro veículo e empresas de aviação, sem algum avião nos
respectivos ativos não circulante imobilizado.
Enquanto a essência da questão puramente contábil não for
“capturada” por uma lei ou regra, se o fato for reconhecido de outra forma, poderá
haver juízos distintos, não somente pelo que não está explícito na lei, mas pelo que está
na lei e pode ser interpretado de outra maneira devido às características da
língua portuguesa que, a depender do contexto, pode ter interpretações
diversas.
No Brasil, por conta de um sistema contábil ainda bastante dependente do chamado “code law”, podem surgir questões conflitantes até mesmo entre as próprias leis, por exemplo as questões societárias não reconhecidas pelo fisco, quanto mais questões de interpretação do próprio conceito, transformado ou não em lei.
Uma ressalva é apenas uma opinião diferente, sem alguma adversidade, sobre interpretações diferentes, relacionadas a questões contábeis.
BORGES, Sérgio Filipe Almeida. Valoração de activos
intangíveis: o caso dos jogadores de futebol. 2011. 82 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Economia, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2011.
Disponível em: <http://ria.ua.pt/bitstream/10773/7368/1/244199.pdf>.
Acesso em: 06.05.2019.